Um sonho que se sonha junto (parte 1)

Texto: Renata Schiffer

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Tempo.

Aproximadamente 1000 dias, 2 inseminações, 9 fertilizações, 2 abortos. Posso ainda colocar nessa lista as diversas terapias alternativas, muitos exames, médicos e inúmeros testes negativos. Essa foi, em números, a nossa espera por um filho(a).

Conhecemos bem a cronologia do tempo, mas existe uma parte emocional atrelada ao tempo que não conseguimos mensurar.  O que faz esse tempo parar é a incerteza de que o seu maior sonho vai dar certo. É perder a esperança de que um dia vai ser possível constituir uma família. 

Cada etapa da fertilização, que às vezes dura 24 horas, parece demorar meses e cada teste negativo parece que faz o tempo voltar para trás.

Essa espera por um positivo faz com que você passe a ter que pensar somente no momento presente, no dia em que está vivendo. Essa espera te faz congelar não só o plano de ser mãe, mas o plano de mudar de emprego ou de fazer uma viagem.

Olhando para trás, até parece que esse tempo foi curto e tenho certeza que valeu a pena, mas quando se está vivendo esse tempo sem tempo, o processo todo pode ser muito doloroso e solitário.

 

A História: Pré-Fertilização

Às vezes é até difícil lembrar como tudo começou. O começo foi como grande parte dos começos. Nos conhecemos, meu marido e eu. Namoramos, aproveitamos bastante essa fase até que decidimos morar juntos e então, casamos. Começaram os planos. Que tipo de família a gente queria ter? Qual era o nosso sonho?

Sonhamos em ter dois filhos. Esse era meu sonho na verdade, meu marido só queria ter um. Como era bom ter essa “briga de casal” sobre quantos filhos teríamos. Com o passar do tempo, essa “briga” deixou de existir para dar espaço a muitas vezes rezar, até implorar, para conseguir ter pelo menos um. 

Seria menino? Seria menina? Que nome daríamos? Será que nasceria no verão? Meu marido queria esperar. Ter uma vida mais sólida. Eu, embora tivesse medo do que viria, queria tentar. Sabia que ter um filho mudaria muito nossas vidas. Não sabia que talvez não ter, mudaria mais ainda.

Começamos a tentar. Eu já tinha 36 anos e embora não fosse tão novinha, ainda estava dentro de uma idade normal para tentar ter o primeiro bebê de forma natural. Um começo normal, talvez até calculado. Mudança de trabalho, ginecologista, casal alinhado. Vamos lá! Foi assim que no primeiro mês de tentativa, eu engravidei. Foi difícil acreditar que seria tão rápido! Até que, quando estava começando a virar uma realidade, perdi. Foi o 1º aborto.

Esse é um luto muito pouco elaborado e discutido. A verdade é que independentemente de em quantas semanas gestacionais acontece o aborto, perde-se uma vida. Na maior parte dos abortos a vida segue normalmente, como se nada importante tivesse acontecido.

Embora a vida seguisse, confesso que fiquei bastante chateada. Já estávamos animados com a vinda de um bebê, e embora tenha sido muito rápido o primeiro positivo, é impressionante como de repente o bebê começa a fazer parte da sua vida. Não imaginei que essa perda seria algo muito sério e escondi meus sentimentos atrás da justificativa de que muitas mulheres passam por essa experiência, de que é muito comum.

Foi até estranho, nesse momento, perceber que a vida volta ao normal. Aquela caixinha de coisas novas que tinha se aberto brevemente, se fecha. A vida continua, cheia de esperança.

Fizemos alguns exames, meu marido e eu, para entender de fato onde estava o problema. Essa é uma etapa cheia de inseguranças - você se depara com um universo novo, desconhecido. Então, recebi um diagnóstico: eu tinha baixa reserva de óvulos. Os principais motivos que levam a esse diagnóstico são idade elevada e endometriose, nenhum dos quais era o meu caso. Embora eu estivesse com 36 anos, a minha reserva era muito abaixo do esperado para a faixa etária.

Além disso, a combinação de alguns exames mostraram que o prognóstico para termos um bebê de forma natural era bem ruim, mas a velha e boa esperança ainda estava lá. Foi nesse momento que começou a luta. Nesse momento começou nossa história, meu filho.

Decidimos iniciar o processo de fertilização, e é aí que “sai” a ginecologista e entra o primeiro médico especialista. Foram muitos e muitos exames, estudos sobre essa condição, leituras na internet. Muitas dúvidas. São muitos os caminhos que se pode seguir nesse processo, tipos de remédio, diversos médicos e metodologias. 

Quando começamos a tentar engravidar naturalmente, perguntei à ginecologista se deveria fazer algum exame prévio para me preparar. Não é necessário, ela respondeu: é muito comum as mulheres demorarem até um ano para engravidar de forma natural, mesmo que não tenham nenhuma condição de saúde que dificulte. 

Mas eu tinha uma dificuldade. A reserva ovariana representa a quantidade de folículos ovarianos presentes nos ovários. A mulher já nasce com uma quantidade determinada de folículos que são utilizados ao longo dos ciclos menstruais, reduzindo o estoque ao longo do tempo já que não se produz mais folículos ao longo da vida. 

Descobrir o motivo pelo qual estava sendo tão difícil engravidar é ótimo sob a ótica de que, identificado o problema, podemos encontrar a solução. No entanto, é estranho saber que o problema é seu: a descoberta traz arrastada uma culpa. Meu marido foi meu pilar nessa fase, nunca me disse que eu era a culpada, mas como seria possível que eu, na condição de mulher, não conseguiria realizar algo que a natureza me deu a possibilidade de fazer? Porque eu não poderia gerar uma vida? 

Comecei a ouvir histórias sobre tratamentos milagrosos e médicos muito recomendados. Não sabia muito bem qual caminho seguir, e a quantidade de informações disponíveis me trouxe uma carga grande de ansiedade. Será que estava fazendo tudo que podia? Será que teria outro tratamento melhor? E se tomasse um hormônio diferente do que o médico havia recomendado, teria mais chances? 

Inicialmente optamos por uma orientação mais leve: o coito programado. O médico deixou claro que a possibilidade de engravidar dessa forma não seria tão maior do que em uma relação normal, mas naquele momento acreditamos que seria uma boa opção.

Fizemos então a primeira tentativa. À primeira vista, até parece não ser nada tão difícil, afinal é uma relação sexual normal - só que agendada. A carga de estresse se dá pelo fato de que é necessário ter relação sexual três dias consecutivos exatamente no mesmo horário do dia anterior. 

Foi nessa etapa em que comecei a ter uma sensação que me acompanhou durante todo o processo: a gravidez deixara de ser algo natural para ser uma série de ações programadas com dia, hora e lugar já determinados. Tudo milimetricamente calculado.

Ainda assim, um sacrifício muito pequeno para uma recompensa tão grande.

Infelizmente, embora tenhamos feito tudo certinho conforme orientação médica, a tentativa de coito programado não trouxe o positivo que tanto esperávamos. Desde esse primeiro momento, sempre tive uma reação similar em todas as tentativas mal sucedidas: após a constatação de que não estava grávida, sentia um luto muito breve e em seguida uma força enorme para começar tudo de novo. 

Eu não me permitia ficar muitos dias remoendo a tristeza. Tínhamos o tempo correndo contra e eu não queria perder esse tempo tão precioso. Mais uma vez, olhando para trás, consigo ver como em nenhum momento vivemos de verdade esse esse luto. Eu vivia com medo do tempo, meu inimigo. 

Assim seguimos para a segunda tentativa do coito programado. Meu segundo positivo! Dessa vez foi um positivo mais forte, um Beta HCG mais alto, apesar de não chegar ao valor ideal. 

Será que agora daria certo? Engraçado que quando a gente já teve uma perda, o impacto do segundo positivo é diferente. Vem acompanhado de bastante insegurança. De cautela. Ainda assim, mesmo não querendo, você faz planos. Se imagina sendo mãe. Pensa no mês que ele(a) vai nascer. Será que vai precisar de roupas de frio? Será que vai ter qual signo?

Depois de alguns dias, o 2º aborto.

 

Novamente aquele vazio. Estranhamente esses abortos ficaram abstratos para mim depois de toda as tentativas que ainda viriam pela frente. Às vezes até esqueço que foram de fato vidas geradas. Essa discussão até hoje me traz de volta aquele vazio. Quando de fato uma vida é gerada? E os demais embriões das fertilizações que fiz, ainda que não tenham chegado a 5 dias de vida?

Sempre me pergunto como seria tentar engravidar e receber o positivo de uma gravidez que só cresce. Sem intercorrências, sem medo. Poder se dar ao luxo de ficar triste se o sexo do bebe não é exatamente aquele que a gente sonhava. Poder planejar o nome, o enxoval, o quartinho desde o primeiro positivo. 

Dessa vez foi mais difícil. Quando comecei a ver que iria perder esse bebê, tinha uma viagem a trabalho. Era uma reunião global em que eu faria uma apresentação para todos os advogados da América Latina. Estava tão feliz com essa experiência, mas ao mesmo tempo estava passando por um aborto. Lembro que fui viajar ainda com um sangramento pequeno, mas emocionalmente tinha um sangramento enorme. Só dividi o que estava vivendo com uma pessoa do trabalho; a vida tinha que seguir normalmente. A esperança ia diminuindo. 

Ainda não queria acreditar que isso estava acontecendo comigo, e dividir com outras pessoas seria aceitar essa nova realidade. Acho que eu também tinha um medo de me expor. Por mais que eu trabalhasse em uma empresa que sempre pregasse como a vida pessoal era importante, vi em vários momentos que isso não era o que ocorria na prática. Não estava preparada para me expor.

Olhando para frente, ainda tínhamos a nosso favor o grande tratamento: a fertilização in vitro. Era um tratamento quase infalível. Não conseguia imaginar que poderia não dar certo. Até então, não sabia de ninguém que havia passado por uma fertilização e não tinha conseguido chegar ao resultado esperado.

…Continua no próximo post…

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